ODISSEIA PLÁSTICA
Barstow, Califórnia
Fevereiro de 2015
Da incrivelmente vasta família dos plásticos, há uma espécie que predomina. Essa espécie nasceu da vulcanização, vulgo Big Bang do enxofre, e evoluiu numa lógica de dependência de petróleo, tornando-se na contemporaneidade tão abundante que não se poderá sequer pensar que algum dia conquistará o Mundo; este já lhe pertence. Considere-se, a título de exemplo, a Grande Porção de Lixo do Pacífico. E como ela, desafiando as leis da física, consegue transformar a morfologia dos oceanos e do planeta Terra. Notável, hã? Mas não é tudo. Essa mesma espécie, quando virada está para o lazer, por vezes até permite que os Humanos interfiram com a sua diária rotina. Tem uma estranha forma de vida, tal a facilidade com que subjuga os outros a seu bel-prazer, e consegue ser admirável na capacidade de persistência. Por vezes vai até aos 450, apontando cada qual desses anos numa glorificada eternidade.
Falamos, portanto, dos sacos de plástico. Esses supremos seres.
E, dentre biliões deles, houve um que saltou à vista, distinguindo-se dos demais e vendo a fama preceder-lhe, sempre, inclusive depois do dia em que morreu.
É a sua história que vos quero contar.
Esse SACO nasceu branco, como tantos dos seus irmãos, numa humilde fábrica de Paso Roble, fruto de uma desajuizada noite do seu pai, um Polietileno de baixa densidade, então mergulhado em álcool e perdido de amores por um Prolipopileno de pele suave – os sacos de plástico não têm género e são todos sacossexuais, isogâmicos por natureza.
Ainda criança, esse Saco viu-se transportado para Pasadena, afim de fazer parte de um breve estágio numa mercearia de um clandestino imigrante Estónio. Saiu de lá poucos dias depois, suportando duas garrafas de cerveja nas mãos de um jovem Punk, com quem teve o prazer de conviver naquela tarde. O Punk vivia das ruas, fazendo-se acompanhar apenas pela sua impecável crista e característica vestimenta, tendo também uma viola barata, com a qual partilhava clássicos do Punk Rock melódico da Califórnia do Sul. Nunca o Saco testemunhara tanta emoção num ser humano, é um facto, mas foi perante aquela sentimental versão acústica da Justified Black Eye que sentiu um tipo de interruptor eléctrico ligar-se dentro de si. Teve uma espécie de epifania, ainda que não pudesse precisar porquê nem para quê.
Quando o Punk vazou a 2ª lata de cerveja, abandonou-a e ao Saco no lancil. Ali ficaram eles, no silêncio da deserta rua que o Punk escolhera para dar fluxo à sua contida nostalgia, absorvendo toda aquela densidade melódica que parecia ainda ecoar pelas circundantes paredes. Ao fazer-se sentir a primeira rajada do vento que sopraria durante os três dias seguintes, o Saco sentiu uma extremamente ridícula vontade de se abanar. Deu-se então a resposta mecânica ao estímulo cerebral que desarmara, titubeando para a sua primeira dança, e deixou-se levar pelos passeios de Pasadena, eufórico ao sabor do vento, sentindo o domínio do ritmo num sedutor vaivém corporal em perfeita harmonia com a atmosfera que o coordenava.
Foi então que surgiu o insuspeito mas misterioso adolescente que mudaria a sua vida para todo o sempre – RICKY FITTS, jovem suburbano, de câmara na mão, que ali captou e imortalizou a beleza do momento. Essa breve cena viria a tornar- se muito popular entre os terráqueos, debatida enquanto universal definição estética do belo, e a fama do Saco que a protagonizara viria a disparar junto dos seus pares.
Rapidamente se tornou no mais célebre dos sacos. A mais grandiosa estrela plástica do planeta. Começaram a surgir plastificados fãs por todo o lado, invocando tal prestação como a grande inspiração das suas plásticas vidas. Criou-se todo um negócio em torno desse sucesso. Fez monstruosas digressões mundiais por fábricas do género, encantando todos aqueles que com os seus movimentos se cruzavam. Fabricaram-se alças de sacos com alusões à sua dança. Venderam-se estampas com a sua imagem. Reproduziram-se as suas características, na ânsia de repetição do feito. Chegou ao topo e foi engolido pelos tentáculos do entretenimento, desvirtuando-o do rasgo artístico que até ali o catapultara. Começou a beber. Não podia sair à rua sem ser reconhecido e até por vezes perseguido. Começou a beber muito. A fugir de si próprio. A beber ainda mais. Caiu no desuso.
Se a ascensão foi meteórica, a queda foi lenta. Silenciosamente dolorosa, e mortal. Propuseram-lhe reciclagem, à qual sempre se opôs. Não queria abdicar da integridade que lhe restava, que era então já pouca ou quase nula. Nunca teve filhos. Entretanto arranjara guarita num albergue de desintoxicação perto da Route 66. Estava bem encaminhado, no tradicional programa dos 12 passos, e desenvolveu uma inédita relação com Deus. Foi lá que começou a projectar o seu mais ambicioso projecto de vida: iria criar um Western musical plástico. Uma coisa megalómana, épica, no verdadeiro sentido das palavras, com batalhões de sacos dançantes pelas pradarias de Monument Valley. Cowboys a sério, como eu.
O projecto nunca viria a arrancar.
E foi por literal acaso que eu viria a testemunhar a sua morte, aqui mesmo em Barstow, no dia em que o Saco se reuniu com o seu principal sucessor do reino dos astros plásticos: um jovem saco reciclável com invejável estampa física. Ali discutiram as componentes artísticas do projecto, com notório entusiasmo. Falaram de arte, focados na arte, imersos na arte. Despediram-se com um abraço.
Quando o mais grandioso Saco de todos os tempos se lançou no atravessar da estrada, foi surpreendentemente colhido por um camião TIR. Não foi o impacto do choque que o vitimou, mas sim o infortúnio de um deslize para o interior do motor, que por estar em alta carburação o incendiou. Nunca teve direito a autópsia.
Fica a lenda, a frio.
E o pormenor de que o camião TIR era todo ele branco, exibindo nada mais do que as siamesas siglas “UA”, em preto, nas suas laterais.
Sinceramente vosso,
THE STRANGER
Ilustração de Carline D’Almeida
A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema.
Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.
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