SEQUELA Nº 2 (FEVEREIRO/15)

PARANÓIA
Viena,
Janeiro de 2015

BILLY CASPER, 59, aguarda pela sua vez na concorrida fila para a Reisenrad – essa imponente e histórica roda gigante que caracteriza grande parte dos postais da capital Austríaca. Ao contrário do que seria de esperar, o imenso frio que se faz sentir não é consequência de neve. Talvez por isso a paisagem de Viena pareça encontrar reflexo na sofrida e crua expressão facial de Billy – é certamente o mais conformado e o de menos luminância dentre todos os turistas que por ali permanecem.
Quando a cancela se abre à sua frente, concedendo-lhe acesso a uma das 15 cabines da roda, detém-se imóvel por uns segundos. Esse momento de introspecção é interrompido por uma esganiçada voz de um MIÚDO, 17, com óbvio sotaque Norte-Americano.
– E então, é para hoje?
Billy dedica-lhe a sua atenção, empenhando uma surpreendente cordial simpatia Britânica.
– Peço desculpa?
Depois repara que o Miúdo é membro integrante de um trio de rapazes, todos eles com idades semelhantes.
– É a nossa vez. Vai entrar ou não?
Billy apercebe-se que algumas dezenas de impacientes silhuetas aguardam de forma ansiosa pela sua entrada na cabine.
– Com certeza. Peço desculpa.
E entra.
O referido trio e uma família de um casal e três crianças seguem-lhe os passos.
No exterior, o vigilante grita por alguém que esteja só. Ainda existe lotação para mais uma pessoa.
ANTOINE DORNEL, 69, de sobretudo negro e aspecto soturno, fura a fila respondendo à chamada. Entra na cabine e ocupa o espaço vago, próximo do Britânico, mas certificando-se de que reserva alguma distância para o corpo deste.
Os rapazes sorriem, observando o desconforto daquela improvável dupla.
Fecha-se a cancela.
A roda começa a girar, elevando a cabine a alguns metros do solo.
Os membros da família começam de imediato a fazer fotografias. Cada qual tem a sua câmara ou telemóvel com máquina fotográfica.
Um dos rapazes também não perde tempo e retira uma garrafa da mochila. A euforia dos amigos revela que ansiavam por aquele momento e começam a beber, alternando valentes goladas com sucessivas passagens de testemunho. A experiência da travessia na Reisenrad pouco ou nada os parece influenciar.
Billy permanece apático. Silenciosamente perturbante.
Os pais da família tentam ignorar e abstrair-se da situação entretanto gerada, fixando os seus olhares no exterior: a vista, agora de um ponto mais elevado, revela Viena na sua inconfundível majestosidade. Fazem mais fotografias.
Antoine, no entanto, parece estar ofendido com a actuação dos jovens. Faz má cara e aponta na direcção de um autocolante que sinaliza a proibição de consumo de comidas e de bebidas no interior da cabine.
Os rapazes sorriem à gargalhada, reagindo com uma nova sequência de ainda mais destemidas goladas. O Miúdo, a certa altura, fixa o olhar em Antoine e oferece-lhe um trago.
Antoine mete-lhe um olhar furioso. Acabara de ser desrespeitado.
– É bom. Schnaps.
Antoine não responde, nem sequer reage. Olha na direcção de Billy, que continua absorto com o olhar perdido na paisagem. Depois suspira, de forma bem audível, quiçá para exibir parte do seu desconforto.
O Miúdo, porém, parece decidido a não abrir mão da sua pretensão e estica de novo a garrafa no sentido de Antoine, que desta vez solta uma desanimada postura.
– Devias ter mais respeito pelas pessoas.
A sua resposta destapa um acentuado sotaque Francófono. Perante o qual o Miúdo solta uma breve gargalhada, contra-atacando de pronto na forma de uma irritante imitação.
– “Deviax ter maix rexpeito pelax pexoax”… Faggy Frenchie…
Os amigos sorriem de forma abusiva. Antoine fica muito nervoso, mas contém-se no ímpeto de responder à letra. O Miúdo ganha confiança e lança para o ar o seguinte desafio:
– Sabem que mais? Vamos jogar à Paranóia.
A Mãe de família começa a ficar incomodada com a situação, que se parece começar a descontrolar. Faz sinal aos filhos para que estes se afastem do trio de jovens turistas Norte-Americanos. O Miúdo prossegue, na liderança do momento, assumindo até alguma agressividade no seu discurso.
– Todos conhecem o jogo? É muito simples. Aquele que estiver à direita sussurra uma pergunta ao ouvido do outro. Por exemplo, “Quem é a mais gostosa da cabine?”. A resposta, que terá de ser o nome de alguém que esteja a participar no jogo, será dada em alta voz. Por exemplo, “A Mãe”! Se ela quiser saber qual foi a pergunta, terá de beber primeiro. Todos perceberam? Ok, começo eu.
E sussurra uma pergunta ao ouvido de um amigo, que por consequência responde em alto tom:
– O Francês!
Antoine permanece em silêncio, visivelmente intrigado, mas não reage. O Miúdo, arreliado, dá ordem para prosseguir o jogo. Uma nova pergunta é sussurrada. A resposta faz-se ouvir ainda em mais alta voz.
– O Francês!
Antoine parece cada vez mais nervoso. Não tolera muito bem a situação.
A Mãe olha na direcção do Marido, como que apelando para uma reacção da sua parte. Ele, no entanto, parece querer ignorar a situação, mantendo-se focado nas fotografias que retira da paisagem.
Por não incitar a qualquer reacção dos demais, o Miúdo aparenta alguma desilusão com o desenrolar do jogo.
A cabine chega ao mais elevado ponto da roda.
É agora a vez do Miúdo receber a sussurrada pergunta. Antoine congela o seu olhar no processo, reduzindo toda a dimensão temporal daquela cabine ao vagaroso arrastar dos segundos. O Miúdo, enquanto escuta a pergunta, não desvia a vista de Antoine. Parece desafiá-lo com o olhar, incutindo um espírito ameaçador na antecipação da sua resposta.
Quando finalmente se prepara para a comunicar, cativando agora a atenção de todos menos de Billy que continua ausente no seu estilo autista, Antoine não resiste.
Não tolera.
Dá um passo em frente e, de forma abrupta, tapa a boca do Miúdo com a palma da sua mão. Os outros rapazes reagem ao que parece ter sido o início de uma agressão. Instala-se o caos na cabine.
Apenas Billy conserva a sua estranha apatia.
Do nada, um enorme falcão passa em alta velocidade numa brilhante razia à cabine.
Billy desperta e arregala o olhar.
– Kes!
E aproxima-se da porta, abrindo-a no alto da travessia, surpreendendo tudo e todos com a sua veemente excitação.
– Kes!
A Mãe apenas consegue ter tempo para tapar os olhos do seu mais novo filho.

LUIS CAMPOS

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Ilustração de Sara Azad

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.