SEQUELA Nº 3 (MARÇO/15)

UBER DRIVER

Travis estacionou o táxi junto à esquina, à sombra de um armazém de produtos de limpeza. Olhou em redor e recordou os passeios sujos, as sarjetas a transbordar de lixo, os detritos da vida urbana que agora eram apenas memórias demasiado vívidas de um pesadelo distante. “Produtos de limpeza. Que ironia.” Desligou o motor e fechou os olhos, respirando fundo.

Um hipster numa bicicleta vermelha e estupidamente cara cruzou a fronteira entre o sol e a sombra, uma linha desenhada no chão empedrado de uma forma tão nítida que parecia ter existência física: de um lado o inferno do verão novaiorquino; do outro um purgatório apenas um pouco menos ardente. O paraíso, esse estava muito longe daquele lugar e daquele momento.

Travis abriu os olhos e passou a mão pela cabeça rapada, fazendo deslizar os dedos pelo suor acumulado em mais uma noite de trabalho. Levou a mão à boca e provou o travo salgado, um pouco azedo. Imediatamente colocou o indicador no pescoço, sobre a artéria carótida, para confirmar que o coração continuava a bater. Continuava. “Acalma-te, homem, estás a exagerar.”

Esticou-se e abriu o porta-luvas para retirar um saco de papel com um cheeseburger já mordido no interior. Cheirou-o, desconfiado, e deu-lhe outra dentada. Não chegou a engolir; abriu a porta do táxi e cuspiu carne, pão e queijo estragados para o chão. Juntou-lhes o resto do hamburguer e o saco de papel amachucado. Aproveitou a porta aberta e saiu do carro para esticar as pernas.

Encostou-se ao táxi e tirou os seus Randall Aviators do bolso do blusão militar gasto de tanto uso. O mundo em chamas parecia um pouco menos agreste visto através das lentes escuras. Passou novamente a mão pela testa, pela cabeça, pelo penacho espesso de cabelo que separava os dois hemisférios – “o meu inferno e o meu purgatório” – , e cruzou os braços, passeando a vista pela rua ainda deserta aquela hora.

Um homem e uma mulher, muito jovens, sairam de um prédio do outro lado da rua, expondo-se a um sol que os fustigou sem piedade. Olharam para um lado e para o outro, procurando alguma coisa na distância. Travis endireitou-se e ergueu o braço, hesitante. O homem e a mulher não repararam nele; estavam concentrados num iPhone que reluzia ao sol. Travis cupiu para o chão e baixou o braço. “Que se fodam!”

No outro passeio o homem sorriu e apontou para a esquerda. Um Ford Crown Vic de 2012, preto e acabado de lavar, aproximou-se e parou em frente deles. Travis endireitou-se de novo. Ajeitou os Aviators para ver melhor a cena. “Filho da….” Atravessou a rua e dirigiu-se ao casal, que se preparava para entrar no carro.

— Precisam de táxi?

Os dois olharam-no, surpreendidos.

— Não, obrigado, meu. Já estamos servidos. Sorry…

O homem ajudou a mulher a entrar para o carro, empurrando-a com alguma urgência. Travis não era do tipo que inspirava muita confiança.

— Isso não é um táxi.
— Yah, nós sabemos. Desculpa… Despacha-te, amor.

Travis inclinou-se e bateu na janela do carro. Abre, filho da puta. O condutor hesitou um instante, mas depois baixou o vidro e fitou-o com ar de desafio.

— O que foi?
— Isto não é um táxi — insistiu Travis.
— Estás a falar comigo?

Travis não aguentou. Roubarem-lhe os clientes era uma coisa; roubarem-lhe a deixa já era demais.

Retirou a sua Smith & Wesson Modelo 36 do bolso do casaco e sorriu amargamente para o condutor. Ergueu a mão e puxou o gatilho. Sentiu com satisfação, como se fosse em câmara lenta, as duas alavancas a empurrar o martelo e o tambor para as suas posições; a acção das molas a reverter a direcção do martelo; o impacto da agulha na base do envólucro da munição de calibre .38 Special; a explosão da pólvora; a libertação do gás; e o recuo prazeroso da arma enquanto o projéctil se dirigia à cabeça do motorista a quase 700 quilómetros por hora.

A única testemunha do triplo homicídio da rua Gansevoort foi um prostituta menor de idade que conhecia Travis de vista.

— Ele até parecia um tipo simpático. Uma vez quase ia atropelando o Sport, e tudo. Mas… acho que Nova Iorque será sempre Nova Iorque.

JOÃO NUNES

Travis-redux

Ilustração de Gonçalo Costa

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.