DOIS VAGABUNDOS, UM CARRINHO DE COMPRAS E A LIBERDADE
A crise estava cada vez pior, as contas acumulavam-se, o emprego cada vez originava mais trabalho e menos dinheiro a receber.
Ainda não se tinha chegado ao abismo mas o mesmo era cada vez mais visível.
Tudo começou com uma daquelas pausas para cigarros, tantas vezes repetidas ao longo dos anos ali ao pé de uma vitrine de bebidas; aquela garrafa como que sorriu para ele. Foi nesse momento que se iniciou uma relação duradoura, mas caótica, como aliás o são todas as boas relações.
Em breve, o emprego desapareceu e com ele a casa e todas as outras comodidades, mas o que interessava isso, se a garrafa (que permanecia imutavelmente bela) estava ali a seu lado?
O tempo passou e não deu por isso.
Por vezes a fome apertava e a alucinante busca por comida era rápida e feroz, muitas vezes significando chegar primeiro que outros a um contentor de lixo.
Numa dessas lutas um fio de esparguete lutava contra ele, abocanhou-o e este esticou-se, antes que se partisse continuou a mastigar seguindo a sua direcção, fechando os olhos, pois tentava saborear o ainda levemente perceptível molho da bolonhesa, qual não foi a sua surpresa, quando os seus lábios tocaram outros.
Num reflexo rápido abriu os olhos e afastou-se.
A dona dos lábios fez a mesma coisa… e fitaram-se ambos por momentos, cada um reconheceu no outro a mesma situação e, desde essa altura não se largaram mais.
Afinal havia mais alguma coisa para além da garrafa e da luta diária para sobreviver, agora tinham de tomar conta um do outro no meio deste mundo louco onde tudo o que julgava ter direito era afinal uma utopia.
Certa vez a rebeldia atacou, um carrinho de compras brotou mesmo à sua frente, estava vazio…
A noite estava quente e com uma leve brisa. Aproveitando o pouco fluxo de tráfego, naquela que é a via principal da cidade – uma grande avenida que desce em direcção ao rio -, saltaram para dentro do carrinho e este começou a descer ganhando velocidade. Subitamente ela segreda-lhe ao ouvido “vou-me pôr de pé, agarra-me”.
Com tempo apenas para reagir e sem pensar, manteve-se agachado agarrando-se com força às pernas dela. Olhou para cima quando a ouviu a rir, vendo-a de seguida abrir os braços e gritar a plenos pulmões “SOU A RAAAAAINHA DO MUNDO!!”.
Em sentido contrário, alguns carros apitavam e desviavam-se do caminho ao dar por eles ali.
O desnível da avenida fez com que o carrinho se desviasse da estrada em direcção à berma, este parou ao bater num passeio, ela desequilibrou-se e aterrou na relva; ele seguiu-a sem ter alternativa. Apesar da pancada, ambos sorriam e um sentimento forte invadiu-o, era uma espécie de invencibilidade mas era quente e tinha sabor…exótico?
“Que maravilha” pensou ele esboçando um sorriso.
PEDRO MONTEIRO
Ilustração de Hugo Caldeira
A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.