SEQUELA Nº 7 (JULHO/15)

TOURO ENRAIVECIDO

Carta ao Pai

Estava na cama, como estou muitas vezes depois de acordar, no limbo entre o sono e o sonho, e pensei o que penso muitas vezes, sobretudo quando o meu filho me aparece com cara de grou mal disposto. Pensei o que é a relação de pai e filho e se o sangue importa. Lembro-me de ti com o teu pai, e como lhe eras devoto. E enquanto crescia era isso que queria para nós, uma relação como a tua com o teu pai. Lembro-me quando dormias no divã da casa da Leite Vasconcelos e o consolo que me dava ir acordar-te, tocar-te na pele, dar-te beijinhos. Lembro-me de te admirar por seres forte e teres voz grossa, e de crescer com a ideia de um pai destemido que me iria aparecer sempre que estivesse frágil, doente ou em apuros. Lembro-me de outras coisas, como aí pelos 12 anos estar a olhar-me ao espelho vaidoso por ter um rol de namoradas e por a pila me ter crescido mais uns centímetros. Houve coisas que nunca percebi, como porque tinhas sempre que aparecer com namoradas e falar dos teus feitos. Ou de um dia me teres dito que um homem é uma ilha. Mais tarde, quando pensei nisso, imaginei-te numa grande solidão. Gostava de ter falado contigo sobre isso, sobre o teu pai, sobre porque foste meu pai, porque dizes que foste tu a querer que eu nascesse quando tudo indicava que era um erro de juventude. Agora já nada disso importa. Devo-te esta vida, e se eu gosto dela, mesmo que tema a morte, como todos tememos, mesmo os que dizem que não. Esse buraco negro onde o ser passa a nada. Um dia zangámo-nos e foi dos dias mais tristes da minha vida. Pensei no Salvador Dalí que ofereceu ao pai um saco de esperma e lhe disse “isto é tudo o que te devo”. Na verdade, cruamente, é isso a nossa história de pai e filho. E só deixa de ser isso quando um pai está disposto a dar a vida por um filho. Quem no seu egoísmo está preparado para isso? Tu andaste na guerra e isso deve ter sido o mais próximo que um homem pode estar de um animal. Matar ou morrer. A lei do mais forte. E isso, imagino, perpetua-se como uma gangrena no espírito. Nunca vou saber o que é – é o mais certo. As guerras da minha geração são outras, como a de entender e aceitar os pais que foram à guerra e se perderam na vida. Imagino-te como alguém que venceu na vida, não como um perdedor. Imagino-te como um homem corajoso, frontal, anarquista à tua maneira, corajoso a ponto de se marginalizar. Fiz de ti um alfarrabista, um livreiro, no meu romantismo de ter um pai admirável. Fiz de ti o “Touro Enraivecido”, o Jack, La Motta, como se aí estivesse o meu próprio espelho, inevitavelmente partido.

Admiro o teu instinto de sobrevivência e liberdade e acho-me próximo dele. Agradeço-te ainda a força que tenho na verga e não posso dizer-to de outra maneira, porque é aquilo que mais me faz sentir vivo, como se quisesse morrer no acto quando fornico, já que tem que ser. Imagino que seja esse o teu sexo ou que tenha sido muitas vezes. Pouco falámos e a vida afastou-nos. Não és de grandes conversas. Parece que estás sempre de partida com algum encontro marcado mais importante. No outro dia, quando te quis a falar sobre a ideia que tens de mim para o programa de televisão, onde falei sobre ti como o meu primeiro tutor literário a par da minha avó, a quem devo muito do que sou, era para ver como falarias de mim, já que nunca te ouvi dizer nada, a não ser que sou um sagorro. Sabes, eu nunca tive uma mesada. Mas por um lado ainda bem. Foi isso que me refinou o instinto de sobrevivência, e a noção de que ser generoso de verdade é para muito poucos, que somos condicionados na nossa grandeza por essa falha do gene egoísta, eu incluído. São os filhos que mais nos ensinam. É aqui pela primeira vez que aprendo isso, e continuo a falhar. Gostava de ter um pai a quem escrevesse e me escrevesse de volta, sem minas e armadilhas, sem truques, sem outras intenções a não ser falar do que possa ser a alma e o amor incondicional. Porque afinal parte da incógnita está aqui, nesta ligação, que não sabemos explicar porque a vida ultrapassa o entendimento. Gostava de ter um pai com quem falar de tudo, de igual para igual. Um pai filósofo. Não um pai provedor. Para isso há a auto suficiência. Um Pai. Foste o pai que podias ser. Fui o filho que consegui ser, e acredita que até ao fim sempre te procurei como alguém inspirador, apesar de todas as contradições, apesar de seres indecifrável, apesar de muitas revoltas por ter que me fazer à vida desde cedo, sem saber ler nem escrever como se habitasse num ringue.

TIAGO SALAZAR

Um Homem é uma Ilha-redux

Ilustração de Ana Neves

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.