SEQUELA Nº 9 (SETEMBRO/15)

COFRE CONFEDERADO

Um calor sufocante, intenso, claustrofóbico. O sol queima a planície. Suaves sibilos contemplativos ressoam… Campas e mais campas até onde as vistas conseguem alcançar.
Lápides de pedra, tábuas e cruzes improvisadas em madeira com nomes cravados, outros meramente improvisados e escritos a giz. Nomes, anónimos… datas inscritas…

Um homem de seus 50 anos vocifera enfurecido enquanto contempla o horizonte. Tuco é o seu nome. Tuco Ramirez, um fora da lei de considerável reputação, procurado em catorze condados estaduais. Notório ladrão, assassino, assaltante à mão armada e saberá Deus, e o próprio, quantas mais ofensas será responsável. Deixado à sua sorte no cemitério de Sad Hill, com uma corda enrolada ao pescoço e as mãos firmemente amarradas.

Passaram algumas horas desde que seu comparsa o deixara entregue ao seu destino, por entre estes emaranhados de sepulcros.
Caminha de um lado para o outro… Meros passos, sem muito se afastar, pontapeando a poeira deste terreno. Sozinho com seus quatro sacos de moedas douradas. Um dos mesmos rasgado pelo ímpeto entusiasmado da descoberta desta fortuna. O êxtase de outrora é agora cansaço, desidratação, o corpo que começa a fraquejar e tombar. Vociferando por entre dentes, como um coiote sequioso. Passara várias horas debaixo deste infernal calor. Demasiadas…

– Blondie!! Maldito sejas! Espera até eu te encontrar.

O passo que se apressa, mas sem muito se afastar do saque. O entusiasmo pueril da ganância sentida ao chegar a Sad Hill dá lugar a um crescente desespero. O calor que lhe tolhe o corpo e o pensamento.
Procura por entre os túmulos, cruzes e pedras. Encosta-se a uma tábua com as arestas algo afiladas. Tenta esfregar nesta superfície em madeira… e outra ao lado… e mais outra. Nada. A corda não rasga, e pouco ou nada cede. Um rosno colérico, o suor em bica. Esforços inglórios.
Um coiote aproxima-se dos sacos de ouro. Pára em cima das moedas douradas do saco rasgado, e urina no dinheiro. Morde um dos restantes sacos e tenta arrastá-lo sem sucesso. É demasiadamente pesado e não se move perante a investida.

– Saíííí daquiiii!

Tuco apressa-se enlouquecido tentando afugentar o coiote, e quando se prepara para pontapear o animal escorrega, cai desamparado e desmaia.
A sensação refrescante de um fio de água no rosto. Ainda que algo combalido e um pouco inconsciente. os olhos abrem lentamente.
Um cano de uma Colt Dragoon diante de seus olhos, o som do cão do revólver a engatilhar, o tambor cilíndrico e rodopiar algumas vezes por entre os dedos deste desconhecido.

– Tens aqui muito ouro, amigo.

Tuco mantém-se algo desorientado e combalido, tentando abrir as pálpebras, e limpar as vistas desfocadas. A manga de um uniforme. É um soldado… Uma manga… cinzenta. Seus olhos pregaram-lhe partidas outrora. Não cometeria o mesmo erro novamente. Seria um soldado da União? Ou um Confederado?
Um tímido esgar de ponderado repentino dejá vu. Um breve cacarejar em surdina. A voz enfraquecida mal se consegue erguer.

–  Hurrah! hurrah… viva o general… – uma nova pausa para um novo esboço daquilo a que a custo poder-se-ia considerar um sorriso irónico. O cansaço é tanto que mal consegue articular as palavras.

–  Abaixo o general…- Hesita em proferir o nome e voltar a equivocar-se.

O soldado joga-lhe mais umas gotas de água por cima, enquanto que Tuco perscruta os cantos da boca, os lábios e as bochechas com a língua tentando ser mais ágil que a água que escorre abaixo. Tuco inspira fundo e sopra um breve bafo de ar quase inexistente na manga do uniforme. Seria o suficiente para esbater a poeira cinzenta e revelar o tom azul do uniforme unionista. É mesmo cinzento. Um soldado Confederado. Sorri uma vez mais para si mesmo aliviado. – Deus odeia os Ianques.

O soldado reconhece-o do campo de batalha na Ponte Branson. – Foste tu que explodiste a ponte. Já não interessa.

Tuco está mais desperto, recupera algumas forças, uma noção de lucidez…
Alguns metros atrás deste soldado, dois possantes cavalos castanhos, de rédeas bem presas a um túmulo de madeira onde se lê a inscrição esculpida: “W.W.Baxter, 1861”. Um cadáver de um segundo soldado de uniforme Confederado deitado sobre a sela de um destes cavalos.

–  Porque é que não me dás um desses cavalos?

–  Parece que temos um cavalo a menos.

–  Homens mortos não andam a cavalo.

–  Este aqui anda. Era um bravo soldado. E este é o seu cavalo.O homem de uniforme cinzento prossegue de Colt em riste. Circulando o tambor cilíndrico da munição. Aparenta estar algo inquieto e nervoso. O braço esquerdo mal se move. Uma mancha de sangue cobre o ombro estilhaçado. O soldado confederado olha ao redor, vislumbrando a cova aberta onde jaz o corpo de Angel Eyes.

–  Este ouro é dele?

–  É meu.

–  Não é mais. Estás cansado, amigo… E eu também estou. Temos vindo a matar-nos uns aos outros por uma maldita ponte. A ponte Branson manter-se-á inexpugnável. Diziam os nossos superiores. Para segurar a posição contra aqueles malditos azuis. A lutar por este país, lavados em sangue… suor… e vocês, ladrões, garimpeiros, assassinos…

Enquanto prossegue o seu monólogo pausado, patriótico e em langor discursivo, Tuco rasteira-o, ergue-se num ápice e cabeceia-o violentamente. O soldado fica prostrado prontamente. Ainda assim, e para assegurar que o tinha morto, Tuco sufoca-o com o joelho firme a apertar-lhe o pescoço, ainda que o corpo inanimado não demonstrasse a menor resistência ou mero sinal de qualquer vitalidade.

– Falas muito! Quando tiveres que disparar, dispara. Não fiques de conversa.

Joga-se sobre o cadáver e servindo-se dos dentes vasculha o interior do uniforme… mordiscando o tecido… Não há mesmo qualquer poeira… os seus olhos não o enganaram desta vez. Está certo disso, agora que recuperou alguma lucidez enquanto o castigo do Sol abrasador cessa momentaneamente de o atordoar e deixar alucinado. É sem sombra de dúvida um Confederado. Continua a vasculhar enquanto morde e rasga as vestes do homem, como um animal ansioso e impaciente. Encontra uma navalha dentro do bolso do casaco. Segura-a por entre os dentes cautelosamente. Não seria agora tempo de rasgar o lábio ou um qualquer aparo descuidado de barba com a lâmina. Cospe a navalha e apressa-se a libertar das apertadas cordas.
Um longo suspiro aliviado…Vivo, uma vez mais. Tuco procura o cantil do soldado. Algumas gotas jogadas sobre o rosto, uma… duas… três pequenas bofetadas nas bochechas, tentando despertar por inteiro. Tenta beber um sorvo. Acima, por entre o Sol, está a corda com que Blondie o enforcara… Tuco pega nos três sacos de ouro e atira-os para cima da sela. Mas falta o último saco… Deixar uma única moeda dourada para trás não é uma opção. De modo algum. Depois de tudo o que passou… Tenta juntar o máximo de moedas possível dentro do chapéu. E enche os bolsos com mais umas quantas… Um plano irrelevante e dotado de inutilidade… É mais do que certo que não conseguirá carregar o último saco. Um amontoado de moedas que não tem onde as guardar…
Um soldado prostrado no chão… Um segundo a cavalo… Uma nova ideia a fervilhar. Apressa-se a arrastar o corpo do Confederado a cavalo. Os dois uniformes cinzentos lado a lado. Agarra cada um pelo maxilar, abrindo cada uma das bocas e despeja moeda a moeda para dentro do estômago dos soldados. Entrelaça os braços ao redor dos corpos. Um solavanco… Dois solavancos… Como se tentasse que os improvisados cofres digerissem o seu tesouro. Arrasta-os e atira-os um a um para cima do cavalo. O bravo equídeo quase tomba com o peso, mas mantém-se firme. Tuco apanha o revólver do soldado, rodando o tambor… Entusiasmo e um brilho no olhar. Tudo se começa a compor. Ou será que é mesmo? Vazio. Nenhuma munição.

Corre para a campa de Angel Eyes, deslizando pela terra até dentro do túmulo. Empunhando a sua Remington 1858 New Army… O tilintar da câmara circulatória do revólver cheio de munições. É música para os seus ouvidos. O coldre igualmente cheio de munições.

– Foi uma longa jornada, não é mesmo, Angel Eyes? Também mereces a tua parte.- E coloca- lhe uma moeda sobre cada pálpebra.

Apressa-se para o cavalo. O calor continua, sufocante, cada vez mais abafado e infernal. Uma pinga de água nas mãos, um trago no cantil… gorgoleja e cospe.

É tempo de partir. Uma forte chibatada com as rédeas no lombo do animal, as esporas cravejadas… Afregulha a galopar pela pradaria, abandonando de uma vez por todas este maldito cemitério. No entanto, o segundo cavalo e sua abundante preciosa mercadoria não consegue acompanhar a velocidade. Um dos soldados regurgita algumas moedas douradas.

– Então rapazes? Vamos lá manter a boca fechada.

E recomeça a cavalgada, abandonando Sad Hill. Um passo pausado, vagaroso… bem mais que o desejado, ainda que sua ansiedade cresça e a impaciência atinja o limite, mas assim terá que ser. Para que a sua mercadoria, que seus cofres confederados não vociferem mais moedas do seu tesouro.

– Estou a caminho. Estou a chegar, Blondie. Lento como como uma tartaruga… Mas estou a chegar…

TIAGO INÁCIO

the good the bad and the ugly1-redux

Ilustração de Michel William

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.