SEQUELA Nº12 (DEZEMBRO/15)

GARE DU NORD

Longe de mim estar agora para aqui com lamechices, mas que já passaram muitas pessoas pela minha vida, ai isso já. Não me considero mais importante que os outros, mas claro que tenho o meu interesse. Se há algo que posso dizer que sou é prestável, acolhedor, e sempre disponível para acolher. Pois, toda gente é, é isso que estão a pensar, mas viver no sítio onde vivo e continuar a ser assim é que é a parte mais difícil.

Por exemplo, uma vez acolhi uma pessoa que estava a fugir de alguém que nunca cheguei a saber exactamente quem era. Ela era linda, aqueles olhos verdes enormes a olhar-me nos olhos não me saíram da cabeça durante muito tempo, além de que tinha uma voz que deixava extasiado quem a ouvisse. Ficámos pelo menos 1 hora os dois ali, bem perto um do outro. No início ela não falava, só respirava fundo, mas pouco a pouco começou a olhar-me e a sorrir. É claro que eu também não disse nada, não gosto de situações forçadas e se algo me ensinou a vida foi que às vezes é necessário partilhar momentos de silêncio em vez dos estragar com baboseiras sem sentido. Quando deu pelas horas já tinha passado 1 hora e saiu a correr. Mas não foi a ultima vez que nos vimos, eu muitas vezes esqueço as caras, mas daquela não me esqueci. E um dia, lá vinha ela abraçada a um moço espadaúdo, parecia bastante educado e ao cruzar-se comigo piscou-me o olho e sorriu. Pena que não tenha ficado com aquele sorriso guardado para sempre. Pode ser que nos voltemos a ver.

E o nervosismo com que fiquei no dia em que o George Meliès apareceu? Vinha acompanhado de algumas caixas em direcção aquele espaço vazio, que até há algum tempo era o simples e pequeno café da Madame Emilie. Ela tinha-se mudado mesmo para o centro e agora até tem esplanada e músicos. Mas aquela loja do senhor Meliès foi das melhores coisas que podia ter acontecido, aquela magia que se sente quando se observa a nostalgia e história que ali estão. Reconheço que não é uma pessoa de trato fácil, mas o que aprendo com ele só de o observar já vale a pena.

Mas houve um momento que nunca mais vou esquecer. Sabem o que é contracenar com a Audrey Tautou? Não devem saber, mas eu sei. Ela até se sentou ao meu colo e adormeceu e nem tive coragem de a acordar. Só queria que ninguém gritasse “corta!” naquele momento. Mas eu sabia que não podia competir com ele, quando eles se viram o coração dela bateu tão forte que quase saltou.

Sabem o que vos digo? Valem a pena as correntes de ar, vale a pena quando alguém passa por mim a correr e nem me olha sequer e só um tempo depois é que quer voltar para poder observar o que não chegou a ver, vale a pena quando alguém se emociona, vale a pena quando naquele encontro fugaz sou eu quem testemunha que não foi um sonho e que, por mais curto que tenha sido, foi real: “Até há aqui um photomaton! Não podia ser mais perfeito!”.

Quem não gosta de ser importante e ter os seus minutinhos de fama? Eu prefiro fazer as pessoas felizes. Mesmo que passem a correr, mesmo que um dia seja de chegada e outro dia seja de partida, e mesmo que no meio daquele abraço a emoção salte embalada numa lágrima, eu não vou dizer a ninguém, fica só entre nós!

CARLOS ESTEVES

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Ilustração de João Dias

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.