SEQUELA Nº 10 (OUTUBRO/15)

O LIVRO MAIS VENDIDO DE TODOS OS TEMPOS

Artur Capote há muitos anos que deseja não fazer nada.

Nos anos 90 leu num livro de um escritor britânico uma frase que dizia qualquer coisa como “só quem não sabe fazer nada é que se pode tornar num bom escritor”.
(NOTA DO AUTOR: Como é óbvio, Somerset Maugham não escreveu nada disto)

Em 1998, terminou “o livro mais vendido de todos os tempos”. Não é autor de uma obra prima. Apenas considerou que um livro com algumas dezenas de páginas com uma história de um serralheiro guitarrista e uma idosa de cabelo roxo devido à violeta genciana merecia um nome suficiente pomposo para que o leitor, ainda em livraria, o quisesse comprar mesmo que a obra fosse uma bela-merda.

Pagou-o, em prestações, a uma editora que com os livros subsidia segways a administradores.
No ano 2000, o livro com o título “o livro mais vendido de todos os tempos” era o mais vendido em sete livrarias de Lisboa.

Artur Capote acorda todas as manhãs em Odivelas, toma o pequeno-almoço num lounge café e apanha o metro maravilhando-se sempre com estação das Olaias. Já no centro, cumpre o ritual automático do dia. Entra numa livraria, procura o seu livro e coloca-o em destaque à frente dos romances de um José (Saramago, Cardoso Pires ou Rodrigues dos Santos).

Eunice, a menina da livraria quero-ler-mais da Rua do Arco, sempre o viu a entrar, religiosamente, às 12h17min, com um passo apressado pelo café tomado no Café do Martins. Sempre gostou do menear de cabeça, da sobrancelha esquerda descaída e do nariz afilado. Desde o primeiro dia, em 1998, que o observa a remexer os livros, disfarçando interesse.

Artur e Eunice casaram-se numa cerimónia simples, em 2003, depois de terem namorado 17 meses e um filho. Ela casou com o autor  d’”o livro mais vendido de todos o tempos” e ele casou com a pequena burguesa. Por sugestão de Artur, o filho foi concebido ao som do épico de amor do Cinema Paraíso de Ennio Morricone.

Desde que começaram a namorar, Eunice, encarregou-se do marketing numa livraria de Lisboa que o levou ao sucesso relativo.

Os direitos de autor deram-lhes o privilégio de viver no seu T2 em Odivelas com vista para o prédio da frente.

Em 2008, depois de vários anos a cortar nos bens essenciais, conseguiram poupar mil euros para ir conhecer a Galiza. Quando regressaram de uma viagem épica – em que não discutiram em nenhum momento porque nunca discutiam – no mesmo minuto em que “atracavam” em Santa Apolónia, um marqueteiro do outro outro lado do oceano dava uma conferência num espaço cultural da cidade. Nessa conferência, o renomeado marqueteiro dava o seu livro como exemplo de que a marca pode fazer o sucesso da mesma. Esse marqueteiro tinha comprado “o livro mais vendido de todos os tempos” na quero-ler-mais.

No dia seguinte, “o livro mais vendido de todos os tempos” estava nos escaparates das mais distintas livrarias da cidade ao lado de obras como “como fazer um líder em dez segundos” ou “o caminho da terra ao céu sem passar no purgatório”.

Artur e Eunice, com o sucesso relativo que se relativizou no tempo, puderam pegar nos direitos de autor e viajar para as canárias, terra de um José, e ter as suas férias de sonho.

Assim é a vida de um homem mediano. Depois envelheceu e morreu e, na vida em que passou, apenas deixou “o livro mais vendido de todos os tempos” mesmo que a obra fosse uma bela-merda.

INÁCIO ROZEIRA

netto

Ilustração de Bruno Netto

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.