SEQUELA Nº 4 (ABRIL/15)

PARAÍSO

Escutara o ruído da bomba ao descer as escadarias do metrô. Sentia todas as veias do corpo lutando contra a força da corrente sanguínea como se ela mesma fosse explodir em cinco minutos, questionava-se sobre a hipótese de, ao preparar o relógio da bomba, ter configurado a si mesma para detonar.

Temia pelas pessoas a sua volta, não queria vidas inocentes sujando seus sonhos durante a noite, pesando ainda mais o corpo que já sofria com a morte do marido drogado. As imagens apareciam à sua frente como se seus olhos fossem projetores iluminando o chão com a memória das brigas, da tentativa vã de resgatar um corpo já viciado e da documentação do divórcio.

Sacudiu a cabeça espantando os pensamentos e imediatamente sentiu a sensação de vingança bem-sucedida, havia matado o homem que matara aos poucos seu marido. Imaginava o sangue em suas mãos, a mistura de dor e alegria causava náusea. Resolveu comer algo, talvez a última refeição decente antes que os carabiniere fossem buscá-la.

Os olhares que trocava com aqueles que passavam à sua volta pareciam saber o que ela havia feito, via agora seu corpo coberto de sangue do outro. Pediu, com seu sotaque americano que arredondava todas as palavras, empelotando-as. Foi para a casa, leu pela última vez as cartas que escrevera tentando denunciar a corrupção e a farsa que aconteciam naquela cidade controlada pelos traficantes. Comovia-se com a própria ingenuidade de ter acreditado que alguém a salvaria, que alguém daria atenção para o seu desespero ao ver claramente a estrutura em abismo em cada ruína daquela pacata cidade italiana. A ingenuidade de não querer que mais crianças morressem por causa do tráfico e era com essa imagem que projetara todo o plano, mas que agora traziam a tona as lágrimas da saudade que viria a sentir daquelas crianças que ensinava a falar sua língua, de todo aquele mundo de possibilidades contidas em cada uma.

Brutalmente interrompida, sentiu uma mão forte que a agarrava, não tentou se debater, estava tudo encerrado, pagaria com a própria vida para que ninguém mais tivesse suas possibilidades interrompidas assim como as crianças, o marido e ela própria tiveram. Tudo se escureceu.

Deu por conta de si na sala quente dos carabiniere que a encaravam com suas fardas polidas e expressões de rotina. Sentia o tic tac da bomba crescer dentro de si enquanto o homem mexia em alguns papéis e que, após uma longa respiração disse:

– Nome?
– My name is Philippa Paccard.
As palavras em inglês fizeram com que os rostos de tédio fossem substituídos pela raiva que causara ao exigir que respeitassem um direito seu. Em meio ao falatório confuso daqueles homens surgiu uma voz tímida e insegura:

– Com licença, eu posso traduzir… sou qualificado – olhou no sentido daquelas palavras que surgiam do canto da sala, seus olhos encontraram-se um momento com os dele.

MARIANA DIAS MIRANDA

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Ilustração de António Miguel Alves

A “SEQUELAS” é uma iniciativa promovida pelo GUIÕES – Festival Internacional do Guião Cinematográfico de Língua Portuguesa (www.guioes.com) e destina-se à celebração do 120º aniversário do Cinema. Ao longo dos 12 meses de 2015 serão lançados textos ilustrados, criados por alguns dos mais entusiasmantes criativos de Língua Portuguesa, para homenagear alguns dos mais icónicos elementos da História do Cinema.